Há um vício em andamento. As letras vivem seu pequeno deleite sempre que por elas passam os olhos dos leitores. A vida há nas letras ou nos olhos de quem lê? sentencia o conhecedor: há de ser nas mãos de quem escreve. Evite esforço, aqui não há espaço para respostas. É a contrução que nos interessa, o caminhar, o processo, a empresa de fazer um pensamento. Espaço da criação do futuro da literatura brasileira. Ler e escrever: o remédio para o vício da criação.

14 março, 2007

Elas vão se desprender

Ela é bailarina mas não gira para a esquerda. Põe as mãos na cintura e se olha pelos espelhos, vai fazer um gesto que demonstra seu cansaço. Há uma seqüência de barras de ferro que ficam postas de maneira muito útil logo abaixo de cada uma das grandes janelas que levam luz e brilho para todo o salão. Em uma dessas barras de ferro há uma toalha que pertence à bailarina. O gesto de cansaço nunca leva o tempo necessário para que as outras moças que ali também executam seus movimentos consigam perceber que a toalha da bailarina serve menos para enxugar seu suor, e mais para esconder seu rosto e sua expressão da dor que dói muito.
O teto fica muito alto. Fosse mais baixo e a bailarina tocaria nele quando voa pelo salão. A cada movimento as pernas mais bambeiam, é uma luta das pernas contra quem as controla, como numa luta entre o general que parte para a guerra com certeza da vitória e seu próprio exército quase todo pessimista, convicto de que a batalha será perdida. É assim que as coisas têm se passado ultimamente entre a bailarina e suas pernas. Há certas pausas durante as quais a bailarina se agacha no chão, fica como a rezar, a conversar com as articulações, os joelhos e os músculos doloridos, como se fosse o general dizendo ao seu exército desmantelado, Vamos homens, que ainda há de chegar pior parte, e há de faltar muito para o fim desta batalha. A bailarina faz mimos no tornozelo, promessas e perdão ao joelho, parece até que diz baixinho, Ora joelho, porque teimaste em arder tanto, pareces até que te irás desmanchar no chão e deixar-me a desmanchar junto contigo, ora, confio em ti joelho, hás de saber que não sou feito margarida, aquela flor que desabrocha quando da falta de alimento que é a água e que é o sol.
As outras moças dançarinas correm então a beber suas águas, lavar seus rostos, conversam e sorriem bastante, coisas que se observam muito nas moças que têm estas idades. As moças dançarinas, tão graciosas, nada sentem que não seja sede e calor, de tudo acham graça, como da bailarina estirada no chão do salão, ainda a conversar com seus joelhos, Veja só joelho, porque há de ser você o único dos joelhos neste salão que tanto reclama dos meus movimentos e meus pulos, porque não te comportas como os teus outros colegas joelhos que pertencem às outras moças, aquelas que estão agora a caçoar de mim, e justamente por tua culpa.
Há música muito bonita no salão. No ritmo da melodia a bailarina vai juntando seus cacos, seus pedaços miudinhos espalhados pelo chão. Tivesse os dedos curtos e não cataria tudo a tempo. Vêm depressa as outras moças dançarinas, vão atropelar a bailarina. Não se pode culpá-las, estão apenas a seguir o ritmo acelerado da melodia deste salão, A culpa há de ser da bailarina ora, não são horas de se juntar pedacinhos nem de se deixar as lágrimas escorrerem pelo rosto, falou assim desse jeito uma das outras moças. Foi mesmo sozinha que a bailarina chegou ao canto do salão, e não fossem as barras de ferro, teria ela por aquele canto ficado mais tempo.
Ergueu-se dando as costas às janelas. A dor passou das pernas ao coração, subiu rápido, feito bolha de ar que vem à tona desde o fundo mar. Pode-se ver agora, quando as lágrimas já caíram quase todas, que a bailarina tem os olhos todos verdes, verdinhos mesmo.
A bailarina já não está mais no salão, mas seu corpo ainda dói. Trocou a sua roupa, foi para debaixo do chuveiro, pois ali as águas caem todas juntas, levando as suas lágrimas embora, parecido com o rio que leva suas águas pra bem longe. Fez parar o chuveiro e não caem mais as águas no seu corpo. Foi se agachando encostada na parede, a pensar nas outras moças que ainda estavam a dançar no salão, pois a elas sobravam forças, pensava assim a bailarina, Quem me dera pudesse eu não ter de enfrentar o rio e nas suas margens tantas roupas esfregar, quem me dera poder um dia chegar até a vassoura e dizer, vassoura, gosto de varrer agarrada contigo, finjo até que estamos a bailar, mas hoje basta, não tenho mais braços nem passos para ti, e foi assim pensando a bailarina, querendo evitar mais lágrimas, pois sabia bem que depois de tantas lágrimas contidas, havia de ser a hora dos soluços e grunhidos incontáveis, e esta hora só há de chegar durante a noite, quando deitada em sua cama sozinha, já que do travesseiro e das estrelas a bailarina não se envergonha. Pôs-se de pé, e manca foi vestindo seu corpo fraco com rendas e panos simples, lembrou do tempo que ganhava muitas rosas dos rapazes. Imaginou a vida diferente que talvez pudesse ter vivido se ao menos a um dos casamentos pedidos tivesse respondido com um sim.
Eram pensamentos freqüentes no fim de cada dia, pois a vida ia triste para a bailarina. Vestida sua roupa, apanhou no chão sua bolsa, deu adeus às moças dançarinas, que fingiram não perceber, e como em todos os dias a bailarina jurou não botar outra vez seus pés naquele salão, disse, Pés não consigo entendê-lo, ao sol se pondo ficas a dizer que não queres outra vez pisar o chão deste salão, mas não demora e ao sol nascendo já vais logo se apressando em voltar a dar teus passos e teus pulos neste lugar, resolvas logo o que tu queres pois não sei se te agüento nesta indecisão. Foi então se encaminhando a bailarina até a porta de saída e quando chegou na ponta das escadas, desceu o primeiro degrau, e como em todas as tardes, cheia das esperanças que habitam o peito de uma mulher, conteve o passo e olhou para trás, e antes que seus pés tocassem a madeira escura, sorriu.
Não foi dito ainda que por essas bandas nunca houve bailarina mais bonita. Há quem diga ser ela a verdadeira bailarina, e este é um caso importante, pois andam a dizer que outras moças dançarinas estão descontentes com a situação, enxergam injustiça neste julgamento. Fica então este caso a ser contado para hora adequada, pois ainda está lá parada a bailarina, diante da escada como já foi dito, pouco antes de tocar seus pés cumpridos na madeira escura, e que ao olhar pra trás começa a sorrir, e parecendo travar conversa com seu sorriso, como se dissesse, Veja bem sorriso, tens que se conter, não te podes deixar sorrir assim tão bonito só por causa deste moço que também te sorri. A bailarina sorridente vai falando aos seus olhos, Veja bem olhos, tens de piscar ao menos um pouco, que vai pensar o moço que te olha assim olhos, na certa vai pensar que estás feliz por olhar para ele olhos. Foi brigar com o coração, a bailarina sem piscar, Veja bem coração, se te palpitas deste modo acabas por fazer o moço pensar que sou eu que não tenho modos, diminua estas batidas que não sei se te seguro, vais sair pela minha boca. Desistiu de por seu pé no degrau, e com a mão no coração fez brincar com as borboletas, Ora borboletas, não fossem vocês a se agitarem neste compasso estaria eu caída neste chão, pois se meu joelho não me agüenta, há de ser apenas o bater das suas asas borboletas, que na minha barriga me seguram pelo ar. Foi por último, antes de descer as escadas, que a bailarina disse então às suas mãos, Meu deus quanta demora mãos, se apressem logo em deixar este corrimão e acenem depressa para o moço, que as suas mãos já hão de se estender na minha frente.
Longe daquele salão, bem num alto de uns morros, sob os pontos luminosos pequeninos que dão vida àquelas bandas, a bailarina diz ao moço viajante, A mim, não me parece que te tenhas mudado em nada, continuas encantador, e o moço viajante que sorria sem parar falou assim à bailarina, Já a mim, me parece que tu mudastes, já és mulher, e teu sorriso é firme como pedra, tu já me olhas como uma mulher costuma olhar para um homem, e a bailarina que sorria sem parar, deixou cair uma lágrima no chão, fez os olhos esverdearem e falou ao viajante, Se te quero, ainda não sei, mas devo dizer-te, caso me querias, que de fato já sou mulher, e que tu não serás o primeiro meu viajante e sabedor disso, hás ainda de me querer, perguntou a bailarina, pois que o viajante respondeu, Tu és bailarina, eu sou viajante, queria eu que tu partisse comigo a viajar, podes ir dançando e ganhando o teu pão em cada canto por onde pararmos, afinal, hás de ser a mais bonita bailarina que já houve nessas bandas, e há também o povo de querer ver tua beleza tão de perto. Fez-se um silêncio, e eis que falou a bailarina, Se me ponho a viajar contigo meu viajante, isso ainda não sei, o que me parece é que o meu corpo vai querendo se ajuntar perto do teu, foi então que disse o viajante, Tu, bailarina, me falaste que as tuas pernas doem, se é esse o teu caso, digo que és boba, pois te demoras a botar tuas pernas entre as minhas, e com sorriso e olhos verdes respondeu a bailarina, Tenho medo meu viajante, pois estou tão certa que entre as tuas, as minhas pernas, elas vão se desprender.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Pq parou, parou pq??

Ta demorando a colocar outras historinhas bunitinhas....

Queremos mais!!!


Bjo grande

10:46 PM

 

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