Há um vício em andamento. As letras vivem seu pequeno deleite sempre que por elas passam os olhos dos leitores. A vida há nas letras ou nos olhos de quem lê? sentencia o conhecedor: há de ser nas mãos de quem escreve. Evite esforço, aqui não há espaço para respostas. É a contrução que nos interessa, o caminhar, o processo, a empresa de fazer um pensamento. Espaço da criação do futuro da literatura brasileira. Ler e escrever: o remédio para o vício da criação.

27 julho, 2009

Cuidado com degraus

Sentada nos degraus da escada que leva ao ultimo andar de um antigo prédio erguido nos subúrbios de Sarajevo, a observar por uma janela a triste paisagem da noite que se esvai, espremendo os olhos para protegê-los do vento ríspido que acompanha a chegada da manhã, Sofia tem entre os dedos um cigarro apagado a espera de um fogo que o bote em chamas. Aprecia minutos a fio o deserto urbano pelo quadrado de uma janela, pintura viva de cores e sombras em metamorfoses contínuas e simétricas em que galhos secos e nuvens pesadas ganham tristes contornos a cada instante de contemplação. Sente que o coração se gela e busca ao fundo dos bolsos do paletó verde musgo a pequena caixa onde restam ainda poucos fósforos, testemunhas oculares de uma noite habitada por espíritos incendiários em que restaram a vagar não mais que estranhos arrependimentos.
Sofia sente o primeiro trago lhe entrar pela garganta e a mente se anuvia em recentes lembranças repletas de formas indefinidas em sequências não ordenadas. Sente no ouvido um zumbido, uma mistura de ecos do toca discos a berrar em máximo volume canções de protesto vencidas, em que risadas de esgarçar gengivas intercalam gemidos entre estalidos de beijos indecentes e sussurros imorais. Sente o segundo trago a entrar mais fundo, a aquecer seu peito cansado, e luta com a mente pelo domínio dos próprios pensamentos, em esforço que de pouco em pouco lança rédeas às memórias malquistas. Tem os sentidos todos fatigados. Sente ainda próximos os odores ácidos da intimidade profunda de corpos alheios, mãos inumeráveis e inomináveis a tocar-lhe sem carinhos ou afetos, a massacrarem sua carne em afagos esfomeados. Mal expele seu terceiro trago e os ruídos que escapam da porta que deixara entreaberta são os sinais de que a partida se aproxima e a trazem à tona da realidade.
O som distante de mãos que se ajeitam em conchas a receber a água fria da torneira da cozinha para enxaguar o rosto sonâmbulo do homem que Sofia não se lembra o nome, o som que a resgata lentamente das recordações inesperadas e esparsas das ultimas horas, é o som que forja o pano de fundo da brancura fosca desta manhã insuportável.
Espreme o cigarro quase intacto no corrimão de madeira envernizada até que a brasa se apague. Ao entrar novamente no pequeno apartamento segue diretamente ao cômodo onde lembra ter deixado sua bolsa e de joelhos junta seus pequenos pertences espalhados pelo chão, seu pequeno livro, lenços e comprimidos. As cortinas de pano pouco protegem o recinto da ainda branda claridade matinal e na penumbra se dedica a observar a brancura do rosto de Sara e as partes de seu corpo que enroscado em cobertas puídas ficam á mostra. Uma camiseta esgarçada é a única peça que lhe veste, deixando às vistas suas coxas e parte das nádegas finas e pálidas, demarcando os contornos de seus seios magros. Num gesto que tantas vezes repetiu nos momentos de partida, Sofia pela primeira vez sente náuseas ao tocar os lábios na testa daquela que por muitos anos foi sua maior amiga. Levanta-se em cambaleios repentinos e cospe no chão como resposta aos sentimentos ambíguos que lhe surgem no peito, numa indecisão momentânea de onde pousar os lábios no gesto de despedida. Vêm impiedosas como tornados as lembranças fulminantes do perfume adocicado de mal gosto a dominar o pescoço de Sara, e como se possível uma volta no tempo, Sofia sente novamente as palmas das mãos em brasas ao tocar o ventre nu e em chamas da amiga. Voltam a formigar as próprias coxas em surtos de libertinagem presos até então em garrafas de absinto, e novamente a indecisão de prosseguir naqueles gestos de coragem inédita, até que longos espasmos de prazer assaltavam seu corpo ao sentir que mãos terceiras a tomavam em violentas invasões, em apropriações demoníacas de seu corpo.
Sente uma tontura e vê seu mundo cair. Busca atônita as chaves do carro, enquanto luta para desvencilhar-se dos braços do homem que tenta brecar-lhe a fuga repentina. São braços de mesma violência da noite recém partida e Sofia não consegue entender porque agora não há mais o encanto e o furor de antes. Num rompante de raiva o golpeia e desce freneticamente as escadas até chegar ao portão que dá acesso a rua.
Entra em seu carro lançando sua bolsa e o paletó no banco traseiro, dá a partida e num nó arranque segue ininterruptamente cruzando países na mais longa e dolorosa viagem de sua vida. Sente dores na face ao segurar por horas seguidas lágrimas insistentes. Em alta velocidade permanece todo o tempo com um só pensamento em mente, um esforço cruel para encontrar meios de chegar firme em sua casa com trejeitos de normalidades e beijar o homem que ama, e continuar a viver como se tudo não tivesse passado de um pensamento indevido.

1 Comments:

Blogger Daniel Fonseca said...

Finalmente "Cuidado com degraus" saiu do mundo das idéias e posso ler....

1:20 PM

 

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