O cuscuz e o chouriço
Enfim meados de agosto e o mormaço vai-se embora das ruas de Paris. O céu ainda conserva o azul piscina e o concreto da paisagem urbana continua a absorver o amarelo forte das tardes infinitas de verão. Nas calçadas do Boulevard des Capuccines restam apenas tristes folhas cobrindo o passeio, anunciando com vigor um outono febril.
É o fim das férias de verão, vão-se os turistas e a cidade retoma seu ritmo de bicicletas, piqueniques e cigarros fumados até o talo por ternos magros.
A vida volta à empresa com elevadores e escadas movimentados por corpos bronzeados e cheios de vida.
Logo pela manhã, segunda-feira e recebemos uma ligação: o senegalês nos convida para almoçar.
Chegamos antes, nos servimos e nos sentamos, eu e o colombiano.
Impera a política latino-americana conturbada entre fatias de chevre e porções de cuscuz com chouriço e carrot. Atrasado dez minutos, o senegalês nos reverencia em comprimentos saudosos de quem reconhece nos sul-americanos um quê irmandade; ainda que na pobreza, ao menos há termos em comum.
Como de praxe, logo nos pergunta se bem passamos pelas vacances, três dias para nós, três semanas para ele. O colombiano é eloqüente ao desvendar os mistérios de uma Barcelona ainda enigmática e lasciva. Discorre sobre uma Toscana pizzaiola, comilona bem da verdade, e segue animado o almoço.
Por força do hábito, ou politesse a quem preferia, o senegalês se volta a mim e pergunta o que fiz no verão, e em meu francês capenga conto brevemente sobre Lisboa e seus encantos à moda ibérica. Antes de encerrar minha pífia participação na conversa acrescento meu contento em ter encontrado bons livros escritos em português, os quais trouxe para Paris para leituras imorais.
O senegalês com boca ainda contendo um pouco de cuscuz me considera imbecil. Me explica estar eu perdendo boa oportunidade de ler em francês e assim ganhar mais desenvoltura na língua, “trabalhas em uma empresa francesa e pode exercer maior influência se dominar o francês”.
Explico a ele que não é este o caso, exercito meu francês nos jornais de metrô a caminho do trabalho. Mas ainda não me sobra fôlego para a literatura em francês. Ele é taxativo em sua posição e afirma ser eu imbecil. Eu digo a ele que literatura não tem nada a ver com ler em francês. Literatura não serve para aprender francês ou qualquer língua, argumento.
O colombiano observa atento meus modos, estratagemas do morro.
O senegalês não arreda pé. Explico a ele que na literatura importam menos as histórias, que o processo e as idéias implícitas que conduzem a leituras múltiplas é o que de fato importa. Por isso ler literatura de boa qualidade em francês é inacessível ainda para mim.
Ele discorda, e enigmático eu pergunto se alguma vez ele já leu uma obra de literatura, e ele me responde que sim, duas vezes.
“Crepúsculo, Amanhecer”.
Então à moda da casa eu repito, “não, você me entendeu mal. Eu disse obra literária, não me refiro a historia para boi dormir”.
Ele sorri, acha engraçado a sonoridade da palavra “boi”.
Pergunta o que significa, eu explico que boi é o marido da vaca, ele me acha simpático e com olhos arregalados e metade da comida ainda no prato é taxativo, on vá a café.
Sob o olhar desconfiado do colombiano seguimos para o café.
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