Há um vício em andamento. As letras vivem seu pequeno deleite sempre que por elas passam os olhos dos leitores. A vida há nas letras ou nos olhos de quem lê? sentencia o conhecedor: há de ser nas mãos de quem escreve. Evite esforço, aqui não há espaço para respostas. É a contrução que nos interessa, o caminhar, o processo, a empresa de fazer um pensamento. Espaço da criação do futuro da literatura brasileira. Ler e escrever: o remédio para o vício da criação.

26 agosto, 2007

Dois contos de 2005

Para os que iniciaram suas visitas a este blog recentemente, resolvi publicar dois contos de aproximadamente dois anos atrás.

Comparem com "Elas vão se desprender" e "Tudo muito simples".
Considero um interessante exercício.

au jour, le jour!
ça vá!

Adorou subir na jabuticabeira pela primeira vez

Adorou subir na jabuticabeira pela primeira vez, e colher com seus próprios dedos as jabuticabas. Sujou as unhas, os pés, porque subiu descalça, e o branco do vestido ficou manchado com o vermelho do fruto. Ainda em cima da árvore já comia as frutas, e se deliciava, pois estavam doces, principalmente as maiores. No ar, o aroma das jabuticabas tomou conta daquele instante. Aroma forte, o sol se pondo, aquele brilho amarelado e laranja bonito do fim do dia, o cheirinho da terra, o espírito completamente apaixonado por aquele momento. Ela gostou de olhar para seus pés sujos de terra, amarelados, tinham a cor da jabuticabeira. Gostou de pensar que se parecia com algo assim tão natural, que talvez até fizesse parte daquela árvore. Teve então um pensamento: porque deus a haveria de ter feito mulher, se ao invés, tivesse a concebido como outra coisa, até mesmo como jabuticabeira, não teria sido ela menos só, não teria sentido tanto a falta de um amor. Então, com a mão direita cheia de jabuticabas, escolheu uma, a que a ela pareceu ser a mais bonita. Mordeu mais uma vez o fruto, e a essas alturas o gosto doce já a fazia pensar em tantas tristezas, em tantas desgraças das que acontecem na vida, que pensou em deus mais uma vez. Ele ao menos deu a ela o dom sentir a doçura em sua boca, fosse mordendo maçãs, as jabuticabas ou as outras bocas. Ficou tão encantada com esse gosto doce, que pensou: é como se a boca ficasse encantada, e quanto mais durasse esse encanto, a alma também se encantasse, porque o que atinge a boca costuma atingir também a alma. O que se sente na boca também se sente na alma, na boca começa a alma e o encontro das bocas é também o encontro das almas.

O amor acaba com ela

O amor acaba com ela. Acaba com seus dias, acabou com suas noites e com o café da manhã. Não lê mais o jornal, assiste televisão no mudo e se movimenta todo o tempo. O amor acaba com o seu sorriso, uma pena pois é tão bonito. Acaba com a sua calma e acabou com a sua casa. Não faz mais seu trabalho, não compra mais seus livros, não quer fumar cigarros e tem pânico de solidão. O amor acaba com suas vontades, depredou seu coração, acabou com suas roupas e a fez cortar as mãos. O amor acaba com seu pequeno jardim, resseca suas flores e empoeirou a sua vida. O amor manchou suas paredes, arranhou seus discos e faz olheiras profundas. Não dorme seu sono, toma remédios e acorda em depressão. O amor num copo de uísque com gotinhas de lágrimas que descem dos olhos vermelhos. O amor na marca de batom na gravata esquecida. Nos gritos de porque, porque tinha de ser assim, gritos de não agüento mais, não precisava ser assim, gritos de a vida não vale nada. O amor que desequilibra o seu redor, que desgoverna a linha do tempo da sua vida. Que estraga sua comida, que mofa seus morangos e não paga suas contas. O amor que não desiste fácil daquele copo cheinho de uísque. Não há sorvete, caminhada, bicicleta e chocolate. Não há os quadros, não há a música, mas há nove aspirinas. E próximo do minuto final, o amor de quem amou de mais e descobriu no fim das contas que tudo não passou de uma paixão que já passou. O amor acaba como num filme, no sonho que dura o um minuto suficiente para fazer brotar aquelas dores na alma. Então acordada dez pras nove ela ainda não sabe por onde começar.